Gregório de Matos: preso e morto por crime de poesia
A literatura em língua portuguesa ganhou em Novembro de 2014 um livro de Ana Miranda intitulado Musa Praguejadora. A vida de Gregório de Matos. Encontrei o livro no início de 2020 numa livraria de Fortaleza, onde não ia há quase 20 anos, e tive oportunidade de ler as suas 555 páginas demoradamente, durante duas semanas, rendido à escrita magistral e admirável de Ana Miranda.
Não sei se há por aí livro que rivalize com Musa Praguejadora, biografia romanceada que conta a vida de Gregório de Matos, e é um retrato admirável da História de Portugal e do Brasil do século XVII, retrato de mulheres da época que foram amadas e rejeitadas até ao tutano, da mesma forma apaixonada e violenta como era o espírito e a natureza de Gregório de Matos; história de guerras físicas e verbais que recordam, pelo prazer da leitura, páginas de Camilo, Aquilino, Eça, Ricardo Jorge e, mais lá para o tempo de Gregório de Matos, o Padre José Agostinho de Macedo. Não me estou a esquecer de Almada Negreiros, que é o mais contemporâneo de todos os escritores citados. Quero lembrá-lo, acima de tudo, pelo seu manifesto anti Dantas.
No Musa Praguejadora, de Ana Miranda, entre as páginas 419 a 425, escreve-se um dos mais violentos ataques ao poder político desses tempos de antanho, coisa que certamente não voltará a encontrar-se por aí nem que se virem gavetas e se arrombem bibliotecas joaninas. Gregório de Matos pagou, pelo prazer de escrever o texto, uma prisão de cerca de dois anos, “comendo as doze”, ou seja, levando pancada de doze em doze horas, e depois a deportação para Angola, onde esteve cerca de um ano, para depois regressar ao Brasil, mas não à Bahia, por proibição do novo governador, que o queria longe da terra natal e dos da família de António Luís da Câmara Coutinho (conhecido também pela alcunha de Tucano), o governador colonial que o poeta atacou com “ódio, constança e cruel temeridade”, como
nunca aconteceu ao longo da sua vida com outra pessoa. Apesar de naquele tempo o grau de doutor (como era o caso), a condição de fidalgo e membro das ordens militares, permitisse a libertação sob juramento, Gregório de Matos não teve esse direito; foi prisioneiro por razões políticas, prisão ordenada e acompanhada pelo governador colonial: “Prisão de preceito, ou seja, por mando. Estava preso por crime de poesia”.
Gregório de Matos voltou de Angola para o Recife mas só teve mais um ano de vida. Perdeu todos os bens de família, nunca mais viu os filhos e a mulher, e os seus últimos meses de vida foram vividos “no meio de gente acolhedora que lhe abriu as casas e o chamou para a sua mesa”. Mas não voltou a incomodar, com os seus versos satíricos, os padres, os magistrados, advogados, militares e governantes, embora a situação em Pernambuco fosse semelhante à da Bahia. Meses antes tinha morrido o Padre António Vieira, que foi um dos seus maiores amigos e protectores, chegando a escrever ao Rei em sua defesa quando Gregório de Matos destratava, também em versos, o governador colonial António de Sousa Meneses, conhecido por “Braço de Prata”, o mais glosado dos políticos nos versos satíricos do “Boca do Inferno”.
O poeta era tão certo das suas dores de consciência que nem a si se poupou nas sátiras que escreveu, já em final de vida, quando percebeu que a viagem para o desterro, em Angola, seria o princípio do fim da sua história, e histórica, vida de poeta e boêmio.
A Musa Praguejadora, de Ana Miranda, abalou o meu espírito adormecido pela literatura “choca” que tenho lido nos últimos quatro anos, tempo que levei a descobrir nas estantes das livrarias esta Obra-prima da literatura em língua portuguesa, que não passou ao lado, como é norma, da justiça literária do seu tempo, ao ganhar, em 2015, o prémio literário da Academia Brasileira de Letras.
Só quando encontramos assim um livro escrito de uma forma genial, a um ritmo avassalador, sem quebras na qualidade da escrita, e no interesse dos temas abordados, percebemos o quanto vale o preço de um livro, e, mais do que isso, o preço do trabalho de um escritor. A Musa Praguejadora é um livro para apaixonados por escritores malditos, sem freio na língua, como o Padre António Vieira, que é contemporâneo e amigo de Gregório de Matos, mas com uma língua mais afiada e, acima de tudo, obscena, que é isso que o diferencia de todos os poetas do seu tempo e, por que não dizê-lo, dos autores destes tempos de coronavírus, que escrevem romances apaixonados pelos seus nomes literários, mais do que pela literatura, rendidos aos seus ricos, cheirosos e importantes editores, de quem são “amigos do coração e das cuecas”, para citar um ditado popular da minha terra.
Quem ler Musa Praguejadora vai encontrar uma parte importante da História de Portugal e do Brasil como ninguém escreveu até hoje; a obra e a vida do “Boca do Inferno” é contada e recontada pela pena de Ana Miranda que, no final do livro, avisa que as páginas em itálico são adaptações de textos de Gregório de Matos com alguma ficção à mistura.
Reparem na prosa que Ana Miranda roubou à vida e à obra de Gregório de Matos para dar conta do que ele sabe do rei dom Afonso VI, enquanto estuda direito em Coimbra, para mais tarde chegar a Juiz da Comarca de Alcácer do Sal, e depois Juiz do Civil em Lisboa, antes de voltar ao Brasil e à sua Bahia natal: “O rei dom
Afonso VI, lascivo, violento e vulgar, que está a tramar contra a própria mãe, governa muito atabalhoado, é um rei menino inocente, que não tem compaixão nem piedade, inimigo da verdade, só tem vícios, está a desgovernar e a fazer perder-se o Reino, sua virtude é pecar. Ambicioso, avarento, persegue os pobres com altos tributos, é desumano, matador, bruto, cruel tirano, como ele jamais houve neste Reino”.
E entre muitas páginas do livro em que se conta da vida e dos costumes da época de Gregório de Matos, em Coimbra, em Lisboa ou em Alcácer do Sal, Ana Miranda recupera a licença de casamento do poeta com Michaela de Andrade, em 1661, ele com 25 anos e ela com 19, para, em cima da assinatura do poeta, analisar a “sua letra bem riscada, bonita, segura, alguns traços rebuscados, dando a sensação de esmero e afectividade”, acrescentando a esse momento importante da vida do poeta, enquanto viveu em Portugal, que nesses tempos “casar era um passo importante para qualquer homem português; apenas os casados, sobretudo o que tinham filhos e criados, podiam exercer certos cargos públicos e fruir de plenos direitos políticos”.
Ana Miranda desenvolve aos longo das 555 páginas de Musa Praguejadora uma escrita tão cuidada e incisiva que cada página é uma lição de como se escreve de forma poética sobre vidas inspiradas, mas também sobre o quotidiano mais surpreendente, ou mais sensual, como os das freiras do Convento de Odivelas, que “moravam em celas forradas de seda, em vez de catres, dormiam em camas acortinadas e macias, tomavam chá em xícaras de porcelana, vestiam por baixo do hábito roupas de renda e cetim, usavam cosméticos na pele, pintavam os lábios, e passavam o dia a ler, tocar, dançar, pôr apelidos, namorar, fuxicar e fazer doces.
Não podendo entregar-se em carne a todos os seus admiradores, muitas freiras davam-se a eles nos bolos e caramelos”. Gregório de Matos foi um enlevado freirático desde os tempos de estudante, conta Ana Miranda, que recorda como, nesses tempos, para um homem era feito muito maior conquistar uma feira que qualquer mulher de outra condição. Ana Miranda leu e estudou durante muitos anos a prosa e a poesia de Gregório de Matos. O seu romance Boca do Inferno, livro premiado, que teve em 2019 uma edição comemorativa dos 30 anos de publicação, é a melhor prova dessa admiração. Mas não é a fortuna de leitora que faz uma boa escritora, e, muito menos, uma boa biógrafa. Ana Miranda foi muito mais além e captou aquilo que para mim é o maior segredo da vida e da escrita do “Boca do Inferno”: a sua adoração pelas mulheres; e a descrição que Ana Miranda faz de cada uma das Musas conhecidas, que preencheram a vida de Gregório de Matos, é um dos maiores encantos do livro. Para provar que a autora não entregou o seu livro aos leitores como quem entrega uma Obra acabada, na página 516 aparece “O ramilhete de flores”, que descreve e explica quem foram todas as mulheres da vida de Gregório de Matos. Faltam nas 21 páginas do “ramilhete” os nomes das muitas e belas mulatas que ele amou, assim como os nomes de algumas mulheres a quem costumava dar nomes poéticos para salvaguardar as suas identidades ”.
“Um provérbio da época dizia que as mulheres deviam sair de casa apenas três vezes na vida: para serem baptizadas, para casar, e para serem enterradas”. Ana Miranda conta os amores do poeta Gregório de Matos no papel de uma das suas amantes, como se o tivesse ouvido tocar e cantar os versos que compõem a sua Obra, fosse testemunha das suas declarações e juras de amor para toda a vida, testemunha igualmente do poeta que queria de cada mulher por quem se apaixonava “a Eva que não escondia a parte que cabia ao seu Adão”, mas também o poeta misógino que “quando não estava apaixonada por uma mulher, estava apaixonado por todas”.
Musa Praguejadora é um livro de retratos femininos únicos na literatura de língua portuguesa, apesar de Camilo, Eça e Machado de Assis, entre outros génios da literatura em língua portuguesa. Retrata ainda, como não existe em outro livro de História de Portugal e do Brasil, a luta de um poeta contra os poderes instituídos e a sociedade da sua época.
Fixemo-nos, para terminar, em algumas figuras femininas que marcaram a vida do “Boca do Inferno”, que deram sentido à sua vida e que, certamente, o inspiraram para o combate político contra os poderosos governantes coloniais, entre eles o “Braço de Prata” e o “Tucano”, alvo, com já referimos, do texto mais demolidor que algum dia se escreveu contra uma autoridade.
Com Brites “ele não vê aquela que o faz ficar cego. Vê tão-somente a casa onde ela mora, como a concha, e não se contenta de não ter a pérola”. De Mariana, que sofre de uma doença fatal, fica a mais triste recordação: “Metem-lhe sal na boca, mas não faz efeito, pois quem é luz do mundo sal da terra há-de ser”. Maria dos Povos é a mulher que, no Brasil, mais marca a sua vida e lhe dá dois filhos. Apanhado um dia em situação de adultério, não tem como dar desculpas, “pois quem sente gosto na culpa perde o gozo ao se desculpar”. Foi ela a que mais sentiu na pele e na carne as alturas em que o poeta era igual a todos os homens do século XVII, fossem escritores ou moços de recados: “as mulheres deviam ser submissas até quase à escravidão”. A história com Bubu também não deixa boa impressão do poeta embora ele tivesse sofrido tanto desse amor que fez o seu testamento como se fosse morrer de verdade de tanto a amar. A verdade é que ela, depois de tanta perseguição, consente dar-lhe o prémio da sua virgindade, mas em pouco tempo adoece e morre. O que fica na história é que ela era meretriz e morreu de doença do útero.
Gregório de Matos “dava a impressão que perdia o interesse e o respeito pela mulher que não se negasse” às suas investidas amorosas. “Decerto o sofrimento causado pela rejeição inspirava o poeta pois a maioria de seus versos a mulheres nasceu do duelo da sedução e do sentimento” . “Era preciso amar mulheres impossíveis”, escreve Ana Miranda no capítulo a seguir à morte de Bubu, para concluir que, citando Pedro Calmon, “foi nessa época da separação de Maria dos Povos que o poeta voltou, muitos anos depois, a seus ardores pelas mulheres mais interditas: as freiras”.
Ana Miranda não deixou nada ao acaso neste livro que considero uma dos livros da minha vida, pelo interesse que me desperta a Obra de Gregório de Matos mas, também, pela forma genial como a escritora elevou o espírito da Vida e da Obra do poeta que, como os antigos escultores do tempo dos Imperadores romanos, não assinava os seus textos.
As perguntas “parvas” de Manuel da Fonseca a Amália Rodrigues
Amália Rodrigues deu centenas de entrevistas ao longo da sua vida mas há uma especial, realizada durante três sessões, no Brejão e em Lisboa, em 1973, que resulta do encontro com o escritor Manuel da Fonseca. Quase meio século depois, no ano do centenário do nascimento da fadista, Pedro Castanheira fez a transcrição integral das conversas. O livro “Amália nas suas palavras” é imperdível para quem tem paixão por Amália mas também por Manuel da Fonseca. A conversa, onde a fadista assume que não a entendem porque “é feliz sem nenhuma razão especial”, também proporciona ao autor de “Seara de Vento” muitas opiniões e considerações que acrescentam interesse à leitura.
O músico Pedro Castanheira deitou mãos a uma gravação de nove horas e quarenta e cinco minutos que regista uma conversa entre Manuel da Fonseca e Amália Rodrigues, realizada em 1973 durante uma semana. Amália Rodrigues e Manuel da Fonseca tiveram a companhia da mulher do primeiro, de Belchior Viegas, empresário de Amália, e de Estrela Cavas, entre outras. A entrevista tinha como intuito a edição de uma primeira biografia da fadista que, na altura, já tinha 53 anos e uma carreira consolidada nacional e internacionalmente.
O livro, a que os editores deram o título de “Amália nas suas palavras”, retrata bem o objectivo do projecto da editora Arcádia, para quem Manuel da Fonseca estava a trabalhar. Para quem tem admiração pela figura e pela Obra de Manuel da Fonseca talvez não exista melhor oportunidade que a leitura deste livro para ficarmos a conhecer o autor de Cerromaior.
A transcrição do texto da autoria de Pedro Castanheira é um achado para quem gosta de estudar a psicologia dos artistas, ou espreitar as suas fraquezas e misérias, quando não as suas qualidades e virtudes. Neste caso “Amália nas suas palavras” é literalmente uma oportunidade única para ficarmos a conhecer o falhanço de um projecto literário, a importância que Manuel da Fonseca dava às suas opiniões, e o desprezo de Amália Rodrigues pelas vaidadezinhas daqueles que gostam de estar sempre a impor os seus gostos e opiniões junto do público.
Amália Rodrigues, já nesta altura da sua vida, fazia da arte de cantar o fado “um caminho pessoal e intransmissível, um diálogo privado entre ela e o género (:), uma procura interior rigorosa e sofrida que não partilha senão com os seus músicos, os seus poetas e os seus públicos”. A citação, que retrata na perfeição o espírito de Amália ao longo da conversa com o autor de “Seara de Vento”, é de Rui Vieira Nery, que assina um excelente prefácio ao livro, onde analisa aquilo que espelha, em boa parte, o grande falhanço de Manuel da Fonseca na tentativa de biografar Amália Rodrigues.
Ao longo de quase todo o livro são muitos os momentos em que a fadista se refugia na sua alegada condição de “ignorante” e “iletrada” , para omitir opinião sobre questões que a incomodam e que não lhe interessa trazer a público. Segundo Amália, depois de muitas perguntas para que defina o que é o povo e que “classes” da sociedade é que aderiam mais e melhor ao seu trabalho, “é muito complicado estar a responder a estas coisas”. Como salienta Rui Vieira Nery, no prefácio, Manuel da Fonseca passa quase toda a entrevista a sugerir a Amália Rodrigues nas próprias perguntas as respostas que gostaria de ouvir.
Não é exagero afirmar que as 400 páginas do livro retratam mais o perfil de Manuel da Fonseca do que o de Amália Rodrigues, pelas constantes, insistentes e extensas opiniões do autor de “Seara de Vento”, tentando, sem êxito, abrir o coração de Amália Rodrigues, que lhe responde na grande maioria dos casos de forma evasiva e, às vezes, até monossilábica, visivelmente pouco interessada na conversa do seu biografo. Mesmo assim o livro é um documento histórico e de grande interesse biográfico, onde Amália, mesmo fugindo às perguntas, se encontra em si, no que disse mas também no que se adivinha nas questões a que não respondeu, revelando-se nas palavras mas também nos silêncios que não soube disfarçar”, como também refere com mestria Pedro Castanheira num outro texto de apresentação do livro, e do seu trabalho de transcrição da entrevista. Recorde-se que o trabalho de Pedro Castanheira foi feito em cima de uma gravação com quase meio século, cheia de problemas técnicos que dificultaram o trabalho de transcrição.
Quem tem interesse e paixão pela vida e pela Obra de Amália Rodrigues tem de ler este livro. Não há outro documento escrito onde a fadista se apresente tão real, e ainda tão presente, quando a ouvimos cantar na rua, no carro, na televisão ou no sossego da nossa casa, onde a sua voz nos devolve uma mulher e uma artista que se considerava “um livro aberto”, admitindo que “não tenho barreiras, não tenho cá por dentro as coisas que não digo”(Pág 90). Uma mulher sem vaidades que se considerava uma pessoa como todas as outras: “só sei falar de mim, não sei falar dos outros (:) nunca pensei em mim como uma figura nacional” (Pág 237). “Choro tanta vez”, diz Amália entre dois fogos cruzados que eram as perguntas de Manuel da Fonseca e os comentários do seu empresário Belchior Viegas. “Vocês não me entendem (:) Não me entendem porque, quando sou feliz, sou feliz sem nenhuma razão especial”; (Págs 285 /296).
Das muitas páginas do livro, que espelham a personalidade de Amália Rodrigues, destaco a citação da página 279 em que a fadista assume que prefere levar um tiro que a mate, e que acabe com tudo, que viver toda a vida com o peso daquele momento em que um artista, em cima do palco, se põe a jeito de levar com um tomate na cabeça. Para o autor deste texto a parte mais caricata da entrevista é a que se relaciona com a conversa sobre o amor e as relações amorosas. É neste capítulo que Manuel da Fonseca falha mais na sua condição de biógrafo, e mostra a sua falta de preparação para este trabalho. Amália Rodrigues fala sem falar do facto de nunca ter sido mãe, e da sua atracção pelos homens não depender de questões físicas ou sexuais, mas de uma certa sensibilidade, não chegando a dizer o que mais a atraía no sexo oposto. A pergunta de Manuel da Fonseca sobre este tema começa da pior forma. “Tinha aqui uma coisa para lhe perguntar: o que entende que seja o amor? É uma pergunta parva mas….”. Foi com esta pergunta “parva” que Manuel da Fonseca conseguiu de Amália uma das respostas mais evasivas de toda a conversa.
O significado da palavra saudade e a contribuição de Amália para mudar o rumo do fado, que vivia muito das letras sobre touros e touradas (Pág 171); a assumpção de que a sua vida não tem história e que as coisas sempre lhe aconteceram pelo lado fácil (Pág 127); a confissão da fadista de que todos os dias se sente desamparada, infeliz, e de isso ser um drama permanente (Pág 115); a recordação do tempo em que tinha 12 anos e já era "desenhada", o que lhe causava problemas com os rapazes quando saia da escola (Pág 65), e, ainda sobre a infância, os tempos em que ganhava dois escudos por dia a aprender a bordar, embora o seu trabalho fosse passar a ferro desde as nove da manhã até às seis da tarde (Pág 59), são momentos da entrevista que justificam a leitura do livro e do trabalho de Manuel da Fonseca, apesar de tudo sério e sincero, demonstrando uma empatia pessoal, e uma admiração pela fadista e pela sua arte de cantar o fado, que Amália sabia retribuir com o seu charme e capacidade de sedução.
Pedro Castanheira com uma das suas filhas gémeas no espaço do Ecoturismo no Alentejo
Pedro Castanheira tem uma licenciatura em Sociologia no ISCTE tendo estudado durante um ano na Faculdade de Ciências Políticas de Bolonha (Itália) e três meses em Cabo Verde onde completou a sua tese que abordava a relação entre a música local/nacional e a globalização. A nível musical teve passagens pela Juventude Musical Portuguesa e pelo Hot-Club de Portugal, tendo também estudado com a pianista Teresa Santos, e o compositor e guitarrista Rui Pedro Dudas.
Depois de se dedicar profissionalmente à música destacou-se enquanto compositor e multi-instrumentista com uma experiência alargada em diferentes formas de abordar a música. Compôs e tocou em vários grupos, quase sempre abordando composições e arranjos de sua autoria, como, por exemplo, o projecto a solo “Sr. Castanho”, o trio “Almagreira”, o quarteto “Folha” (tocou na abertura do British Forum for Ethnomusicology em 2010), o septeto “Yemanjazz”, cujo disco foi alvo de críticas muito positivas por parte da imprensa, entre outros. Já colaborou com diversos artistas de diferentes áreas como a pintura, poesia, dança (destaque para a colaboração com a companhia de dança mexicana Lux Boreal na abertura da Expo Saragoça 2008), burlesco, novo circo, teatro e até culinária. Desenvolveu também uma intensa actividade na criação de bandas sonoras para documentários.
Actualmente dedica-se à gestão de uma unidade de Eco Turismo no Alentejo com a sua companheira Caroline Oulman Carp.
Amália nas suas palavras Transcrição e notas de Pedro Castanheira Prefácio de Rui Vieira Nery Edição conjunta Porto Editora/Edições Nelson de Matos Setembro de 2020
Vergílio Alberto Vieira e os Novos Trabalhos Novos Danos
Vergílio Alberto Vieira acabou de publicar “Novos Trabalhos Novos Danos", Obra Poética em dois volumes que reúne meio século de poesia. VAV é um dos maiores poetas portugueses vivos, com uma obra literária que vai do teatro à ficção, ensaio, biografia e literatura juvenil.
Poucos escritores portugueses vivos têm uma obra tão valiosa, tão variada e tão cuidada como a de Vergílio Alberto Vieira. O poeta de Amares, que vive em Braga, e passou uma boa parte da sua vida a trabalhar em Lisboa como professor, escreve e reescreve aos 70 anos os textos mais belos da sua Obra; e, com os cuidados e o zelo que os agricultores dedicam à terra onde todos os anos deitam a semente, VAV vai organizando antologias, reunião de novos trabalhos, sempre em edições de grande qualidade gráfica, a grande maioria editadas pela Crescente Branco da qual ele próprio é um dos responsáveis gráficos. Da poesia ao teatro e à escrita biográfica, literatura juvenil e crítica literária, VAV não nega nem renega o labor da escrita ainda que, dessa luta, muitas vezes o que fica seja apenas a certeza de que “a poesia é moeda que nada compra”.
Em tempo de pandemia, quase de catástrofe mundial, em que as livrarias estão fechadas, não é possível beber um café nem ao postigo de um estabelecimento comercial; num tempo em que a poesia está cada vez mais ausente das livrarias, e os novos poetas se entregam cada vez mais a copiarem-se uns aos outros, saúdam-se os dois volumes de “Novos Trabalhos Novos Danos”, uma mão cheia de felicidade em letra de fôrma.
Quem sabe falar da verdadeira beleza dos astros são os astrónomos. Nós, os curiosos da astronomia, também os admiramos mas, é por tudo o que lemos, ouvimos falar e é fruto das mais extraordinárias investigações; acima de tudo porque adoramos tirar proveito da beleza que nos servem em papel couché, ou graças ao poder do cinema e da televisão que popularizou o conhecimento, não só do mundo maravilhoso dos astros mas também do mundo animal, marítimo, e de tantos outros que nos deixam rendidos à imagem, muito mais, e cada vez mais, que à palavra. Se olho para o céu, e fico maravilhado com o brilho das estrelas, em parte deve-se ao conhecimento empírico que tenho do Universo, talvez o mais belo enigma que nos rodeia.
No planeta terra, neste “Chão de Víboras” por onde caminhamos todos os dias, a poesia é o melhor instrumento para alcançarmos o brilho das estrelas, se não somos astrónomos e, como a maioria dos humanos, vivemos dos milagres do céu, ainda que seja o céu que, ao longo de uma vida, só vemos da janela da nossa casa. Com a poesia podemos elevar a palavra ao estatuto de imagem, e podemos adivinhar a dança das galáxias, onde certamente um dia os homens viajarão com a mesma facilidade que hoje viajam de comboio, ou de avião, entre Lisboa e Sidney, só para citar a viagem mais sonhada por muitos poetas.
Foi a releitura da poesia dos últimos 50 anos de Vergílio Alberto Vieira que me levou a escrever sobre o fascínio que tenho pelos astros que, no entanto, nunca foi superior ao deslumbramento pela palavra dos escritores, sobretudo dos poetas que mais admiro, como é o caso de VAV, por serem os melhores no ofício da escrita, mas também os mais vagabundos, ao ponto de, por tanto sublimarem a escrita, terem o destino fatal de Ícaro que, por voar tão perto do sol, acabou a cair no mar.
Uma boa parte da produção poética de VAV, agora reunida em "Novos Trabalhos Novos Danos ", lê-se com a mesma admiração e encanto do tempo em que escreveu os poemas do seu primeiro livro, ou seja, “A idade do Fogo”. Alguns agora são mais belos por que também nós estamos mais maduros para os lermos e admirarmos.
"Novos Trabalhos Novos Danos" é a galáxia onde viaja a extraordinária existência ( no sentido de Obra) poética de VAV, desconhecida dos astrónomos por razões suficientemente conhecidas, mas amada e cultivada pelos leitores comuns, como eu, que buscam na palavra e no conjunto do poema o coração do dia, o palpitante coração do dia, o coração que não aceita insuficiências cardíacas e muito menos angioplastias.
Ivan Junqueira, no prefácio ao livro "Papéis de Fumar", depura com as mais refinadas palavras a arte e o engenho poético de VAV. “Há em Vergílio Alberto Vieira a busca incessante de uma identidade ontológica que se diria, não propriamente perdida, mas ainda por conquistar e que deve aqui ser entendida como um esforço no sentido do autoconhecimento. É como se o poeta procurasse insistentemente dentro de si mesmo, não o que perdeu, mas o que ainda não encontrou”
Ivan Junqueira foi, talvez, quem até agora melhor soube escrever sobre a experiência de ler a poesia de VAV; um poeta que, em boa parte da sua produção poética “nos remete aos epigramas gregos e latinos, nos quais os pensamentos, sempre de cunho sentencioso, são expressos de forma concisa, lapidar e breve”, de “um minimalismo formal e expressivo que nos recorda o haicai oriental e nos adverte, graças à celebração de uma natureza que “ama ocultar-se”, como diria Heraclito em um dos seus fragmentos, para o carácter de ambiguidade que entranha toda a grande e autêntica poesia”.
Muitos escreveram ao longo de meio século sobre as experiências de leitura da poesia de VAV; Ivan Junqueira foi quem melhor nos devolveu, em síntese, a ideia de que o poeta de Amares, desde livros como “O Caminho da Serpente” “dá o melhor de si no que toca à estrita invenção poética e à distensão ontológica de sua alma, que a cada passo se surpreende como se estivesse contemplando o acto da sua proporia criação, naquele instante mágico e difuso em que “entre o sono e a aurora, a transparência de um véu apenas nos separa”.
Por último, e sempre citando Ivan Junqueira, “VAV é o poeta que assume a condição de viajante que nunca parte nem chega a lugar algum, já que o seu périplo se cumpre, como os de Xavier de Maistre ou de Almeida Garret, em torno de si mesmo”, um poeta que nomeia seres e lugares “que emergem quase fantasmáticos, de poemas que se servem de uma linguagem por assim dizer onírica e que os arranca da imobilidade em que jazem seja nas sonolentas areias do deserto, seja no mármore hierático da estatuária ou na pátina da monumentalidade arquitetônica. Em suma, o poeta dá vida àquilo que parecia estar morto em sua solene ( e enganosa) imortalidade”.
Nota importante: a Obra reunida em "Novos Trabalhos Novos Danos" inclui muitos poemas inéditos e não dispensa a leitura de "Todo o Trabalho Toda Pena", a última antologia editada em 2016 que é igualmente um livro para colecionadores.
(conversa com João Cabral de Melo Neto quatro dias antes da sua morte)
Foi a poeta Suzana Vargas que me levou a um palacete da praia do Flamengo onde vivia o poeta João Cabral de Melo Neto. Por mais incrível que possa parecer a porta estava no trinco, embora fossemos guiados já dentro de casa por uma empregada. Eu fiquei no salão à espera; a Suzana foi à procura do poeta por entre salas.
O que tínhamos previsto aconteceu; Marly Oliveira, a poeta e também mulher de JCML, não apareceu nem para nos cumprimentar nem mais tarde para se despedir: Susana, que a conhecia bem, já tinha avisado; ela gostava era que viéssemos cá a casa para a entrevistar.
Passaram quase vinte anos deste encontro; o que melhor guardo são as palavras iniciais de desânimo; a morte, que o visitou passados quatro dias, já andava por ali na luz dos seus olhos; mesmo assim o poeta fez revelações que me deixaram rendido; uma delas teve a ver com Miró. JCML contou que o visitava muitas vezes no seu atelier, em Barcelona, e que não conseguia falar com ele de poesia porque o pintor tinha muito pouco interesse pela literatura.
Da sua estadia em Portugal (Porto) como Cônsul Geral (1984-1987), pouco antes da sua reforma, o poeta tinha poucas recordações; o que nos contou foram acidentes de percurso; e não conseguimos roubar-lhe uma palavra elogiosa sobre amigos com quem tenha convivido ou relacionado na cidade Invicta.
JCML repetiu várias vezes que não acreditava na inspiração e que o verdadeiro artista tem que viver obsessivamente a sua Obra. No dia em que conversámos com ele, enterrado no sofá de um salão de época, o poeta queria falar sobre quase tudo menos de literatura; a cegueira, e ''uma angústia que não tinha cura'', juntamente com uma medicação muito forte era, para o autor de A Educação pela Pedra, ''assim como uma bala enterrada no corpo''.
Na passada terça-feira, dia 5, por volta das seis da tarde, subimos ao sétimo andar de um prédio situado na Praia do Flamengo, no Rio de Janeiro, para visitar o poeta, João Cabral de Melo Neto. Apesar da saúde já muito frágil, o poeta, recebeu-nos com cordialidade e manteve uma conversa de quase uma hora para falar um pouco da sua vida, da sua obra e do drama de viver cego e com ''uma angústia que não tinha cura''. Quatro dias depois soubemos da sua morte pelos jornais. O autor de Morte e Vida Severina, A Educação pela Pedra e Museu de Tudo foi traído pelo coração aos 79 anos. A literatura de língua portuguesa perdeu um dos seus maiores representantes, Prémio Camões e Rainha Sofia pelo conjunto da sua obra. João Cabral de Melo Neto era um dos maiores poetas de língua portuguesa. Autor de uma obra que é considerada das mais representativas e originais do século, o seu nome foi várias vezes apontado como candidato ao Nobel da Literatura e, entre muitos prémios que ganhou, os de maior destaque foram o prémio Camões e Rainha Sofia para o conjunto da obra publicada.
Autor de Morte e Vida Severina, um auto de Natal escrito por encomenda que era considerado uma das suas obras mais importantes, embora o poeta dissesse que era ''a coisa mais relaxada que já escrevi'', João Cabral lançou a polémica no meio literário quando confessou que não acreditava na inspiração e que ''gostaria de criar como um matemático, sempre a partir· de elementos racionais''.
Reconhecendo dever uma boa parte da sua aprendizagem da arte a Le Corbusier, um arquitecto famoso que era muito citado por amigos seus do mesmo ofício, quando as suas vidas decorriam com normalidade na cidade natal de Recife, João Cabral de Melo Neto confessava que aprendeu com ele ''a fazer arte não com o mórbido mas com o são, não com o espontâneo mas com o construído''.
Diplomata de carreira, João Cabral viveu os últimos anos da sua vida profissional no Porto, onde deixou muitos amigos e leu Mensagem de Fernando Pessoa, a poesia de Sofia, Eugénio de Andrade e Herberto Helder, os poetas portugueses que mais apreciava. Sobre a poesia de Camões reconheceu que nunca aprendeu a admirar verdadeiramente o poeta porque ''na escola ele era muito mal ensinado'' e isso pesou para sempre na suas opções de leitura. ''O meu trabalho em Portugal nunca me deu muito tempo para conviver com escritores. As relações entre Brasil e Portugal sempre foram muito difíceis e isso deixou-me pouco tempo para conviver com os amigos'', recordou, acentuando no entanto que o longo período de doença da sua primeira mulher também ajudou, pela negativa, a marcar esse tempo.
Depois de recordar bons e maus momentos da vida e da sua carreira literária, de explicar como ''a escrita era um verdadeiro sofrimento, é muito melhor ler do que escrever'', João Cabral confessou, numa voz que parecia apagar-se a cada palavra que pronunciava, que a sua vida de escritor tinha terminado. ''Estou cego e não sou capaz de ditar. Para mim a forma visual do poema é muito importante'', adiantou, depois de confessar também que não aceitava que lhe lessem livros porque lhe faltava a paciência e a angústia que sentia era mais forte do que tudo. ''De resto não sinto nenhuma necessidade de escrever. Os medicamentos que tomo para a depressão tomam conta de mim. Para quem passou a vida lendo e escrevendo a situação é dramática mas eu tenho sabido habituar-me a esta realidade'', disse.
Numa sala ampla de um sétimo andar de um apartamento da Praia do Flamengo, o poeta de A Educação pela pedra ia procurando manter acesa uma conversa de amigos, das poucas que tinha aceitado nos últimos tempos. ''Telefonam muito a pedir entrevistas mas eu já não atendo ninguém. Também já não recebo muitas visitas. As pessoas procuram-me mas eu depressa as desincentivo ou mando alguém fazê-lo por mim. Quem eu mais recebo são escritores a pedirem o meu voto para a Academia'', acabou por confessar com um sorriso, talvez o primeiro dessa tarde, que durou muito pouco tempo depois de confrontado com o recente apoio a Roberto Campos, um intelectual de direita que substituiu Dias Gomes, um escritor de esquerda falecido em acidente de viação, na cada vez mais desacreditada Academia Brasileira de Letras.
Das suas passagens por Espanha, onde exerceu a carreira de diplomata durante mais tempo e com maior sucesso, João Cabral recordou as relações de amizade com Miró e outros pintores famosos da época. Das relações com Manuel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade, dois dos mais famosos escritores seus contemporâneos, falou como de irmãos se tratassem, ''embora nada exista para testemunhar a não ser a memória do que foi vivido. Eu não escrevia cartas a ninguém. Devo ter sido o único escritor que não recebeu uma carta de Bandeira'', confessou, adiantando no entanto que as relações com Drummond foram muitos especiais porque ''foi ele que me convenceu que eu também poderia ser poeta''.
Para o autor de Uma faca só lâmina, Cão com plumas e A escola das facas, ''uma pessoa para criar tem que saber viver com uma obsessão. Não importa qual, pode ser o amor de uma mulher, uma ideia política, na certeza de que assim o artista toma-se uma pessoa mais lúcida''.
Foi com estas palavras repetidas de uma entrevista entretanto publicada num livro de António Carlos Secchin, um dos maiores estudiosos da obra cabralina, que João Cabral começou a pôr um .ponto final na conversa da tarde da passada terça-feira, dia 5, no amplo salão da sua casa na Praia do Flamengo.
Momentos antes da porta do 701 se fechar, depois de uma última despedida, o poeta falou da morte e do consolo que sentia por ter aproveitado tão bem os seus quase oitenta anos de vida. Pelo que contam os jornais, o poeta morreu vitimado por um poema que lhe atingiu o coração.
Quaderna literatura y arte Editora: Quarto Crescente
André Seffrin: o escritor, crítico e editor que ainda organiza tertúlias na sua casa
André Seffrin é crítico literário e de artes plásticas, editor, ensaísta, faz de tudo e mais umas botas se lhe pedirem para organizar um livro ou valorizar um autor; e deve ser o único homem ligado às artes que ainda se dá ao trabalho de convidar os seus amigos para tertúlias na sua casa.
Há cerca de três dezenas de anos levaram-me no início da noite, a medo, porque eu era novo nestas andanças e podia sair-me mal, para o bairro das Laranjeiras, no Rio de Janeiro, para casa de um escritor, crítico literário e editor que habitualmente promovia tertúlias convidando gente do mesmo ofício.
Chama-se André Seffrin e ainda hoje é meu amigo e eu sou visita de sua casa como aconteceu recentemente.
Esta última estadia no Rio de Janeiro, o último dia de tertúlia com o André e a sua família, deram-se balanço para escrever este texto e provavelmente surpreender os meus leitores. Sou assumidamente um suicida tanto no convívio familiar como no trabalho e nos meus encargos com as coisas do corpo e do espírito. Nunca faço nada pela metade e se o faço é por razões da minha falta de inteligência ou força física. O eu que sou nunca me dá descanso nem a dormir. Sonho todas as noites e é raro que não goste dos meus sonhos. No meu dia a dia estou sempre a inventar mesmo depois de já ter passado os 68 anos e o meu coração ter reclamado dentro do peito. Sou incapaz de viajar para Cabo Verde, Brasil, França, Espanha, Chile ou Argentina, talvez os países que mais gosto, sem levar comigo o trabalho, os textos literários inacabados, uma pilha de livros, uma agenda de pequenos biscates que sei que posso resolver entre o café da manhã e o descanso num banco de jardim, a meio de um mergulho no mar, depois de uma sesta, enquanto dou uma mordidela numa nuvem ou engulo um bando de aves raras que me levam o que resta do cabelo que ainda tenho na cabeça.
Conversar a ouvir fado e MPB
O André Seffrin é jornalista cultural tal como eu também gostava de ser. Mas somos tão diferentes um do outro que nos entendemos às mil maravilhas. Dantes durante uma noite de convívio, só à minha parte despejava dois litros de vinho entre as 7 da tarde e as 6 da madrugada; quando era cerveja nunca soube bem quantos litros bebia. Agora estou mais moderado e bebo mais água que vinho ou cerveja. Ele não. Continua em forma. A beber e a escrever. André Seffrin é daqueles escribas que gosta do que faz. Detesta assinar os seus textos e com 58 anos de vida discursou poucas vezes e já não aceita subir a uma tribuna para botar faladura. O que ele mais gosta é de trabalhar para editores que não querem textos assinados para as contracapas dos livros, as badanas ou para outra qualquer valorização do livro feito por quem vive e trabalha de ler e julgar o que os outros escrevem.
Nesta última vez que tertuliamos tivemos tempo de ver na televisão a gravação completa do Festival da Cancão Brasileira de 1966. Antes disso ouvimos a Marisa e a Amália a cantar o fado. Nunca na minha vida, na minha casa, liguei a televisão para ouvir fados ou fadistas, e muito menos espetáculos tão antigos, do tempo da Maria Cachucha. Quando saí da casa do André Seffrin e desci a rua Mário Portela, eram cerca de três da matina, disse para mim mesmo: preciso disto mais vezes para não morrer dentro de um carro de Fórmula1 sem saber se sou piloto ou copiloto suicida. Mesmo enquanto os artistas brasileiros famosos da época cantavam as canções que ainda hoje marcam a MPB brasileira, não deixamos de falar do Lêdo Ivo, do António Torres, da poesia do Alexei Bueno, dos diários inéditos do Walmir Ayala, da pintura do Gonçalo Ivo, da equipa do Fluminense, jogo que também vimos na íntegra, que nessa noite jogava em Saquarema, onde tínhamos passado uns dias antes, ele na sua casa de férias e eu numa Pousada onde fui reviver outros tempos. Falamos ainda da antologia de poesia erótica que haveremos de reunir a quatro mãos, das Obras de Octávio de Faria e do Baú de Ossos de Pedro Nava, que o André disse para não comprar que ia trazer um exemplar de Saquarema.
Os livros como uma obrigação
André Seffrin não é maldizente como eu; não é tão cruel como eu a julgar pessoas, mas que ninguém o julgue só pelo que parece. Tem um humor fino e mortífero, ao contrário do meu, que só tem bala para atordoar.
Alguns dos melhores livros que ele leu, eu também já li depois de nos conhecermos. Nisso continuo igual ao que era aos 20 anos. Lia quase tudo o que eram sugestões de leitura do Manuel Alegre, do Baptista Bastos, do David Mourão Ferreira, Jorge de Sena, Piteira Santos, entre tantos outros que correspondiam aos pedidos dos jornais em tempos de feiras do livro ou de listagens de fim de ano. Embora esteja velho e cansado, não perco a mania de procurar os livros que, antes de morrer, tenho obrigação de ler. Diz-se que o escritor alemão Johann Wolfgang von Goethe, o autor de Fausto, chamou um padre minutos antes de morrer para se confessar. “Padre, confesso que vou morrer sem ter lido a Divina Comédia. É pecado”, perguntou. Só quem vive entre livros, viagens e fantasias percebe que há livros que até na hora da morte devem ser boa companhia. Nem que seja para os renegar. E tal como dizia Sócrates, horas antes de morrer questionado pelos seus discípulos sobre a razão porque não tirava os olhos de um livro, se a morte estava por breves horas, “devemos aprender até morrer”.
Escrever por favor e de borla
Nesta última tertúlia o André confessou que quando chegou ao Rio de Janeiro vindo do sul, assistiu a muitas conversas do Walmir Ayala com músicos, escritores e artísticas plásticos da época, mas só guarda de memória o ambiente, nunca pensou em tirar apontamentos, sequer imaginava que a sua vida ir ser ler e escrever até morrer.
Quando conto as vezes que estivemos juntos, e os episódios que já vivemos, e as histórias que nunca irei contar desses encontros, porque me falta já o pormenor, fico danado e ainda mais suicida do que acho que merecia. A matéria de trabalho de um jornalista é a memória; quando a memória se vai são os apontamentos a que podemos recorrer que nos salvam a vida, ou seja, que nos dão material de trabalho para adiarmos a morte cerebral, doença que persegue qualquer pessoa que vive da arte da escrita, da música ou de qualquer outra actividade intelectual.
Muitos dos amigos e amigas de há cerca de 30 anos que se juntavam a nós em tertúlia, já morreram e desses ainda reza a história, embora não sejam para aqui chamados. O André tem mais opinião literária dos amigos e conhecidos do que sobre eles próprios. Por isso quando fala dos grandes nomes da literatura brasileira que conheceu, e sobre quem escreveu, é como se falasse de família, de gente com quem bebeu um copo e trocou umas ideias sobre o assunto.
Embora tenha trabalhado para dezenas de editoras, poucas vezes o fez como funcionário. André Seffrin é dos poucos escritores do mundo que aceita viver no fio da navalha para fazer só o que gosta. Por isso admite que raramente escreve por favor e muito menos de borla. A escrita é o seu trabalho, e escrever exige tempo de estudo e, mais ainda, de habilidade intelectual que para pôr em prática é preciso fazer muitos abdominais e saltos mortais.
Quem quer prefácios do André Seffrin não fica a chuchar no dedo mas tem que merecê-lo.
O Demónio da Inquietude
É minha convicção que os escritores vivem da abundância da sua memória, por isso leem muito, colecionam grandes bibliotecas, são regra geral ratos de sebos, interessam-se desalmadamente por jornais e revistas, notícias sobre tudo o que mexe no mundo das artes, da política e de sociedade, raramente sobre economia.
Recentemente perguntei ao autor de “O Demónio da Inquietude“, quem, depois de Carlos Drummond de Andrade, a quem chamou o Camões do nosso tempo, podíamos nomear seu herdeiro no Brasil. A pergunta complementava um desabado recente sobre a poesia que se publica actualmente. Não vejo ninguém, desabafou o mais arguto dos críticos brasileiros, mas também o menos cruel, eventualmente o mais afetivo dos escrutinadores da literatura brasileira dos últimos anos.
André Seffrin conviveu desde muito cedo com Walmir Ayala. Quando chegou ao Rio de Janeiro com 21 anos, e começou a conviver com Ayala e os seus amigos e conhecidos, tudo gente ligada às artes e às letras, André Seffrin fez-se crítico literário encantado pelas possibilidades de ser visitado pelas musas, ao contrário dos seus interlocutores que não faziam mais nada que andar no seu encalço, muitas vezes com a ajuda da bebida, do fumo e de algumas loucuras inomináveis.
A minha memória está povoada de artistas que nunca precisaram de procurar trabalho: encadernadores, correeiros, alfaiates, marceneiros, jardineiros, torneiros, canalizadores, entre muitas outras profissões. O trabalho chegava porque eles eram únicos, já tinham sido aprendizes, herdaram a profissão dos seus mestres, mas também as oficinas e os clientes dedicados. André Seffrin lembra-me os mestres da arte e da vida que tenho como referências. Nunca o ouvi fazer queixinhas do trabalho ou de alguma desfeita, jamais o ouvi clamar por justiça como fazem as vedetas e como se houvesse justiça para quem trabalha por sua conta. Fizeram dele guardião de uma grande biblioteca e de um grande autor, e ele não enjeita esforços para continuar a valorizar quem nele confiou.
O desejo de ser dono de editora
O que guardo dos seus segredos de escritor e editor profissional são episódios de falta de tesouraria, e o recurso à venda de revistas e jornais antigos que lhe serviram de material de trabalho por valores que deram para sobreviver durante dois anos. Mas também ouvi contar que gastou num só livro, que queria ter na biblioteca, o valor de um cordão de ouro.
No ano em que se comemoram os 500 anos do nascimento de Luís Vaz de Camões, comemorações que estão longe de terem a dignidade que merecem, por culpa dos políticos analfabetos, Isabel Rio Novo vai publicar uma biografia do poeta que lhe consumiu seis anos de trabalho. Ao contrário dos políticos, os editores ainda arriscam. E os biógrafos fazem jus à sua profissão, trabalhando por pouco mas semeando em terra boa, esperando pela hora da colheita. André Seffrin trabalha como um poeta mas recebe como um biógrafo; esforça-se como um romancista mas é pago como revisor de texto. O seu sonho era fundar uma editora, e não trabalhar só para os editores, mas para isso precisava de duas vidas, pois é como escritor que sabe ganhar o pão para a boca. E um crítico também precisa de dormir e descansar e não tem que ser nem pode ser homem de negócios a tempo inteiro, que é o que são os editores que arriscam pedir uma biografia sobre um poeta, que morreu há 500 anos, e que terá sido enterrado em vala comum, embrulhado num lençol, numa data que nunca se irá saber ao certo.
O escritor que a vaidade não perturba
André Seffrin guarda livros como um médico guarda amostras de medicamentos. O último livro que me ofereceu andava na minha lista de compras há mais de 10 anos e foi-me sugerido por uma amiga do Porto que tem um fraquinho por Rodin e Rainer Maria Rilke. O segundo foi secretário do primeiro e escreveu uma pequena biografia que é uma preciosidade. André Seffrin, tal como Rodin, amadureceu enclausurado na sua oficina, escondendo-se do público que o lia, dos artistas que precisavam dele, dos editores com quem tratava só de forma profissional, falando pouco e poucas vezes.
A segurança da sua escrita foi conquistada em silêncio, sem deslumbramentos, sem se deixar perturbar pelos elogios, sabendo de outras vidas que a grande segurança de um escritor é a sua independência.
André Seffrin é um daqueles escritores em que todos podem bater, o que não é o caso, mas que nenhum elogio o desconcerta ou perturba.
O crítico de mão implacável, sem ser carrasco, já escreveu sobre centenas de escritores, artistas plásticos e ensaístas. Só recentemente reuniu em livro alguns, poucos, desses textos que ajudaram alguns autores a deixarem de duvidar de si mesmos e dos seus recursos literários. JAE
Nota de interesses; “O Demónio da Inquietude” é uma edição portuguesa da editora Rosmaninho, uma chancela de O MIRANTE, que está em todas as livrarias portuguesas. O livro tem uma folha de rosto com a seguinte epígrafe que abre a secção de Poetas Brasileiros: “…essa estranha terra natal chamada língua portuguesa. Augusto Meyer, A forma secreta / “Epístola a Porfírio”.
Embora tenha sido eu o editor, o livro vai-se lendo e relendo aos trancos e barrancos, e de vez em quando falha a memória sobre um autor que faz parte do livro, sobre um texto que volta a ser tema de conversa. Só a epígrafe fica, porque no Brasil há sangue português até nas raízes das árvores.
Graças ao André, ou por causa da amizade com o André, editei no Brasil, também com a Rosmaninho "Rio, da Glória à Piedade", um livro de crónicas e memórias de homenagem ao Rio de Janeiro, escrito por um colectivo de autores em que também estou incluído. Recentemente André Seffrin organizou para a Editora Nova Fronteira uma reedição de uma Antologia de Poemas de Amor, trabalho iniciado há muitos anos por Walmir Ayala, e fez o favor de me incluir, embora eu não o merecesse.