Alguns poemas dos livros publicados até 2003 paginados sem obedecer a qualquer ordem de datas e títulos
Na oficina onde escrevo estas palavras entra a luz do sol por uma porta e a luz da lua por uma outra; oficina de muitas portas e janelas todas viradas para a mesma rua onde trabalho de noite e de dia sem ver outro sol nem outra lua; era isto o que eu queria; ser um homem para a poesia; de resto o poeta de que também aqui se trata é filho de um macaco que casou com uma macaca
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Prefiro brincar com as crianças do que ser o rei da festa dos homens; quero morrer de sono ao fim do dia e não quero ser o bêbado da sacristia; sou o alegre e feliz marçano da aldeia; e não é melhor que regedor da poesia?
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O poema vai bater na parede; desliza para o meio do chão; fica como morto no caminho; poema ou homem ou criança há-de viver se se levantar sozinho
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Não resisto ao sol desta casa; à capa dos livros desconhecidos; ao calor dos poemas assinados; e choro por me julgar uma criança que sabe, sabe mas não descobre por que é que a mãe lhe esconde os rebuçados
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A torneira do quintal já não deita água como antigamente mas a boca na torneira é mais livre de matar a sede
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Na minha aldeia os rebanhos é que guardam o pastor e o cão; nas festas da minha aldeia a vida dos pobres é uma alegria e os foguetes são coisa séria como é a poesia; na minha aldeia a gente grita de contente: chorar a ouvir o fado é deitar a semente à terra; os rebanhos é que guardam o pastor e o cão na minha aldeia de casas brancas e gente humilde; por contar fica a história da raposa que é duma aldeia de gente livre
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Sou capaz de morrer, fechar os olhos, perder-me mil vezes por dia; à noite ainda pergunto quantas palavras a mais teve a minha alegria
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Nas horas em que o dia não acaba a rua mais movimentada da minha terra parece o corredor de uma grande casa onde vivem muitas pessoas satisfeitas; soube-se hoje que a conhecida amante foi apanhada na cama a arder e que o seu amor não teve tempo de se vestir quando fugia para a rua; em frente do prédio mais antigo da vila os homens ainda não secaram a boca apesar de ser quase meio-dia e de já terem passado muitas manhãs de conversa a falarem daquela puta; a rua mais movimentada da minha terra parece o corredor de uma grande casa onde a família se cruza a toda a hora da cozinha para o quarto e da retrete para a sala; esta boa gente conhece-me bem e eu passo e cumprimento-os a todos e já me habituei também a usar a língua como os toureiros usam o capote com os toiros; não há maneira de uma pessoa morrer triste na terra branca que tem uma grande rua ao meio porque somos todos uma grande família que festeja o baptismo da puta e do paneleiro
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Andam a cobrar à minha porta de mão estendida recibos falsos e outras palavras gente pobre bem na vida
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Gosto muito de crianças mas o que eu mais gosto é dos meus filhos; foi um grande poeta o luís vaz de camões mas eu encho os meus caboucos é a ler os versos do rui bello
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Não tenho jeito para uma certa vida de que os sacanas falam em uníssono; gosto muito de viver mas não quero o colo de ninguém para andar o meu caminho; se os jovens poetas um dia descobrem que os versos são estrume para adubar os campos lá se perde mais uma das velhas tradições portuguesas que é amar a juventude e ensiná-la a cavar sem enxada
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Infelizes os homens a quem o padre conforta com as suas palavras; pergunto se não têm amigos ou amantes que lhes façam um verso e digam ao ouvido; que importa o número de filhos que lhe enchem a casa quando o problema do pai é sentir-se órfão; um dia mais tarde a inocência é uma ferida no cérebro que apodrece a melhor carne da vida; pergunto ao poeta quantas palavras de amor são precisas para mandar um padre aprender a rezar; infelizes ainda os poetas que os deuses confortam quando a mão que escreve é um sexo murcho
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Voltei à eira para malhar o feijão da minha pequena horta; no campo continua a crescer a seara dos meus sonhos.
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Quero continuar a fazer todos os dias a mesma coisa: pastar, pastar o tempo todo no meio das ovelhas; cansar a cabeça a pensar nos milagres da terra que me fazem engordar e dar boa lã; dar provas de que pertenço ao rebanho para depois ter forças para desobedecer ao pastor; numa terra onde ainda há tantos lobisomens de nada vale ser o mais feliz de todos os carneiros.
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O menino mais pobre da minha rua veio bater-me à porta sem palavras para pedir; o nosso último olhar foi o de velhos conhecidos que não se amam mas nunca se esquecem um do outro.
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Como é que hoje teria corrido o trabalho aos homens do campo? será que os homens da cortiça já acabaram o trabalho no gavião? e o mestre da oficina de bicicletas terá alguma novidade para me dar amanhã? eu faço ideia o que foi dar à língua na praça esta manhã de segunda-feira; e se foi hoje que a jovem mulher do novo comerciante rico confessou finalmente ao balcão da pastelaria o nome do sabonete com que lava o cu todas as manhãs? o homem da casa de mobílias terá ganho coragem para pedir o dinheiro do calote de que se queixa todos os dias ao balcão do café? o gajo que se julga um verdadeiro empresário de sucesso teria voltado a pedir nas bombas de gasolina para pagar os dez euros de combustível com um cheque sem provisão? como é que hoje teria corrido o dia de casada à minha amiga de infância que diz que o marido não tem tesão e não é capaz de arranjar outro homem para foder?
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Nos campos da minha aldeia a terra é fértil; fértil como não há palavras; nos campos da minha aldeia as árvores resistem, resistem muito mais do que o (nosso) amor à terra; das casas brancas da minha aldeia todos os dias sai gente para o trabalho no campo; homens e mulheres que aprenderam em crianças a aproveitarem o melhor que podiam todo o seu tempo; no céu da minha aldeia não vivem deuses: há muito tempo que desceram à terra e esqueceram o caminho por onde vieram; em todas as ruas passeiam crianças de mãos dadas e os homens são verdadeiros filhos da cepa que trazem as mulheres sempre grávidas
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Hoje fiquei feliz com a minha sorte; cheguei a casa muito tarde depois de um dia passado a viajar por paragens distantes; como é bom viver nesta pequena vila de casario branco cheia de gente que ainda se deita com as galinhas e se esquece da porta da rua no trinco; em lisboa conheci um poeta, um verdadeiro homem de letras, parecido com o meu vizinho que é um doido pela caça e conta histórias de morrer da ida aos javalis; há muito tempo que não vivia um dia assim; de manhã subi a um prédio luxuoso e muito alto; agora mesmo que escrevo estas palavras descalças, sentado ao fresco, quase que bato com a cabeça no velho telhado de minha casa; faltam-me palavras para dizer o que penso do homem de letras que conheci em lisboa e do meu vizinho que acaba de me telefonar para saber se eu não estava morto em algum canto; uma eternidade fora de casa avisou ele; e eu que estive apenas um dia indisponível para ser solidário com as andorinhas que vêm à minha terra fazer ninho e todos os anos encontram os beirais das casas cada vez mais descuidados.
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O pastor chegou há instantes do redil onde deixou fechadas todas as suas preocupações; assim que entrou na taberna, ainda a comer o resto do pão com azeitonas, o dia rastejou pela última vez nas ruas da vila; quero um copo de vinho, uma vela para iluminar o cérebro que a cabeça tem uma lâmpada fundida, pediu entre portas o pastor dos pastores que come e dorme com as ovelhas e os cães de todos os rebanhos; muito mais tarde, à hora das ovelhas começarem a sentir a lã a crescer, o pastor mandou o taberneiro lavar o copo pela última vez com a mesma água; na taberna ficaram ainda todos os pastores que nunca vão dormir ao redil com as suas ovelhas; na terra do pastor antónio, aquele que nunca poupou filhos à mulher nem deu pela vida passar, há um monumento aos homens que dormem com o cajado à cabeceira da cama por causa dos lobos que só querem as ovelhas para eles.
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Uma pedra tem por dentro a felicidade de um homem que chega ao fim da vida
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Do parto da luz é que nascem as sombras nos lugares fixos de todos os dias; as flores não têm futuro; palavras…. ao mar que a eternidade é mais antiga
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O poeta, po-e-ta, é um pássaro que nunca aprende a voar; rasteja, rasteja com as asas para ser mais pleno e sublime o seu rastejar
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Dorme menino dorme nos braços cansados da tua mãe que a noite espreita-te os sonhos e a insónia da vida as madrugadas; dorme menino dorme descansa os braços da tua mãe
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Nem todos os homens deitam contas à vida; alguns fazem nós nas cordas
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Como as searas interrogas os dias de maio sem chuva e desabrigados de vento e ao respirares respondes com o nascer do sol mais violento; dou-te a minha boca; guardei-te a memória das chuvas lá dentro
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Nos pomares do teu corpo não se apanham os frutos; subimos as árvores para amadurecermos com eles
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Quando fustiga do norte o vento é o manuel luís o repetente insubordinado da escola; quando sopra do sul o vento é o professor antónio a ler pela terceira vez a coluna social do jornal durante o último intervalo; quando a nossa mãe aparece grávida o vento é um empurrão pelas costas
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Felizmente que deixei as mãos a salvo depois de tanto ter negociado o meu ouro; sempre fui homem de poucas palavras; em criança era mais fácil porque sabia rezar; já não tenho tanto tempo para a poesia; agora compro e vendo ouro pratas relógios, etc etc; o ouro sempre foi negócio para grandes apuros ao fim do dia; com a poesia ainda hoje faço o mesmo; apuro sempre
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Hei-de falar com ternura, um dia que os homens cresçam como a água na minha boca, dos gestos que vi às palavras; quando tiver um filho crescido que me ponha a mão pelas costas hei-de falar-lhe com ternura do meu melhor amigo que destruiu muros para saltar os sonhos; se um dia tiver forças para viver até ao fim o dia de sol que se escreve nas ruas hei-de falar com ternura dos homens que vi de dedo apontado aos poemas matando o poeta com o brilho das unhas
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A noite é sozinha, envergonha-se do dia, é quase cega não reconhece, não teve uma luz feliz; a noite é para dormir; não há mais dias de chuva e sol se os homens não adormecerem para a má figura dos sonhos; é escura a noite e não se pode acender a luz; vamos abraçando os homens; talvez as palavras ainda se contem por beijos
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Que do meu mal o homem padeça e o mal não tenha cura para maior desgraça; não me saem da cabeça os cornos do poema
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Porque a vida nos corre mal agarramos em pedras; que outra vida têm as pedras dos alicerces?
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As flores que apodrecem nos altares das igrejas quando vão para o lixo salvam tudo o que os homens para lá mandaram de errado? que sabemos nós desta vida que um jovem padre não tenha já perdoado aos mais velhos pecadores? as flores pelo chão das igrejas, oferecidas aos santos, são para as crianças mijarem em cima antes de saírem dos templos arrastadas pelas mãos das mães que logo que chegam à rua cagam para os princípios? um poeta de olhos levantados para o céu à procura da inspiração não era merecedor de uma mijadela sagrada de deus? as asas com que se enfeitam os anjos das igrejas servem para mostrar às crianças como se chega ao futuro ou para que todos os homens vejam a triste figura que fazem quando não têm ombros para a vida? a mãe dolorosa com o seu filho nos braços já terá perguntado sobre a sua pouca sorte na hora do parto? uma velha ajoelhada num confessionário conta ao padre os seus pecados ou apenas quer ouvir do outro lado uma voz que lhe cante pelas pernas acima?