INÍCIO

Crítica II

Posfácio

AMANHÃ INESQUECÍVEL

Prefácio

O LIVRO DOS VENTOS

OURO, NEGÓCIOS, POESIA, ETC

TODOS OS POEMAS
DA VERGONHA

Joaquim António Emídio reúne parte da sua poesia em Todos os Poemas da Vergonha

OURO, NEGÓCIOS, POESIA, ETC

 

 

Sobre um poema de

Joaquim António Emídio

por Luís de Miranda Rocha

 

Felizmente que deixei as mãos/ a salvo // depois de tanto ter negociado / o meu ouro // sempre fui um homem / de poucas palavras // em criança era mais fácil / porque sabia rezar // já não tenho tanto tempo / para a poesia // agora compro e vendo / ouro, prata, relógios, etc. // o ouro sempre foi / negócio para grandes // apuros / ao fim do dia // como a poesia / ainda hoje // faço o mesmo / apuro sempre

 

O poema em epígrafe é de Joaquim António Emídio e pertence ao livro “Amanhã Inesquecível" (Lisboa, Europress, 1988). O livro é o quarto que o autor até à data publicou, depois de "Os Dias Sonâmbulos" (1983), "A Contestação do Desejo" (1985), e " A Mulher de António" (1987). O primeiro é esquecível, mas os restantes talvez não, e é possível ver neles uma evolução no sentido do apuramento das capacidades técnicas e construtivas do poema, e ainda da clarificação duma visão problemática do mundo, da vida, da existência, da história. "Amanhã Inesquecível' mostra isso com alguma clareza, cume que é, até ver, duma crescente evolução. E o poema em epígrafe um dos melhores desse poemário. Cabe aqui ainda um breve informe biográfico: Joaquim António Emídio é da vila da Chamusca, onde nasceu há 34 anos e onde vive e trabalha - como ourives e, de há cerca de ano e meio a esta parte, como jornalista, director dum jornal local chamado "O MIRANTE". Entre escritores de poesia (poetas, se referirmos), a profissão de jornalista não é rara. Mas o mesmo não se pode dizer da profissão de ourives. Em rigor, só nos ocorre um caso: Gil Vicente, há mais de 400 anos. Ênfase para esta anotação, porque ela ajuda a compreender o poema que aqui se trata de comentar. Na posse destas informações, dificilmente resistiremos à tentação de ler este poema como qualquer coisa de autobiográfico. Tentação mais do que legítima, e sobre seu quê – mas não pouco - de compensatório. E o poema nem abre com qualquer mea culpa, mas com uma afirmação peremptória e algo triunfal de resistência, de sobrevivência aos apelos da alienação: "Felizmente que deixei as mãos /a salvo" É importante que se trate das mãos, que sejam as mãos o que ficou a salvo, o que resistiu e sobreviveu aos envolvimentos do real e das realidades. À ocorrência de mãos poderão afluir noções como, por exemplo, espírito, consciência. Que se diga o que aqui se diz das mãos, pode isso significar (por omissão, porque a omissão também significa) que, com o negócio do ouro, o espírito, a consciência, ficaram alguma coisa afectados. Não é sem consequências (no foro psíquico, mental, ou tão só intimo, interior) que alguém se dedica longamente aos negócios, ainda que (ou sobretudo se) negócios de ouro. A ocorrência de mãos pode ter outra implicação: pode querer dizer que as mãos são prioritárias, que é com as mãos que se faz tanto o negócio do ouro como o trabalho da poesia – que a poesia é um trabalho, redundante dizê-lo. Veremos pois. Agora veríamos essa ocorrência segundo a qual "sempre fui homem de/poucas palavras/". A pertinência desta inflexiva autoanotação parece estar nisto, que é a revelação duma realidade ou duas para além das aparências que a encobrem. Tem-se a ideia que o negócio é uma arte implicando capacidade de persuasão verbal, e pode não o ser, mas, antes, uma destreza, uma técnica, uma actividade, dispensando um recurso (pelo menos excessivo) a expedientes verbais. Por um lado. Por outro, dir-se-ia que o recurso excessivo a expedientes manuais qual prática de prestidigitação produziria, nas mãos, algum efeito de desgaste. Vimos, porém, que não, ou não demasiado: as mãos ficaram "a salvo". Tem mais implicações: "em criança era mais fácil, - o quê? Sobreviver com poucas palavras, sendo "homem de poucas palavras". Porquê? O poema diz: "porque sabia rezar". Rezar é um acto duplo – verbal e gestual: implica a fala e as mãos, quase sempre, numa determinada pose, mais ou menos ritual. Mas sobretudo, implica isto: uma entrega do sujeito a um domínio sobrenatural. O trabalho com o ouro, pelo menos em termos de negócios, nada ou pouco tem a ver com o sobrenatural, por mais que o valor simbólico do ouro perdure. O que no poema se diz que mais perdura é isto, porém: "Apuros". "Apuros" é aqui nome ambíguo. Significa, pelo menos, duas coisas: dificuldades e labores de aperfeiçoamento. Estes labores são difíceis, obviamente: "dificuldades" pode reduzir ou mesmo anular a distinção, e sintetizar produtivamente um significado: trabalhos, por exemplo. E a ideia de síntese reforça-se na notação de "ao fim do dia", período de balanço (do dia) e de prospecção (da noite). Uma interpretação não perdendo de vista o mundo referencial diria pouco mais ou menos o seguinte: - Aquele que trabalhou (em termos de negócio) com ouro, quase supremo valor material, não se esquece do que a experiência lhe ensinou (e continua a ensinar, noutros domínios), e, trabalhando com a poesia, nos domínios da linguagem, da escrita aplica aí os ensinamentos dessa experiência. Nesta relação, antes da analogia há, certamente, uma grande reciprocidade.

 

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