INÍCIO

Crítica II

Posfácio

AMANHÃ INESQUECÍVEL

Prefácio

O LIVRO DOS VENTOS

OURO, NEGÓCIOS, POESIA, ETC

TODOS OS POEMAS
DA VERGONHA

Joaquim António Emídio reúne parte da sua poesia em Todos os Poemas da Vergonha

Posfácio AMANHÃ INESQUECÍVEL

 

 

Luís de Miranda Rocha

SOBRE A POESIA

DE JOAQUIM ANTÓNIO EMÍDIO

Dezembro 1980

 

Amanhã Inesquecível é o quinto livro de poemas de Joaquim António Emídio. Está na bibliografia activa: JAE publicou pela primeira vez em 1982, no colectivo Fingidor, editou (ele próprio) a sua primeira colectânea individual, Os Dias Sonâmbulos, em 1983, reapareceu noutro Fingidor em 1984, e voltou a publicar mais duas colectâneas: A Contestação do Desejo, em 1983, e A Mulher de António em 1985. O presente volume indica que o autor tem mais para publicar. Acrescente-se que JAE nasceu na Chamusca em 1955. Não são pormenores irrelevantes. A idade do autor, antes de mais. Ela sugere desde logo a aproximação em relação a outros, os das mais recentes promoções, da segunda metade de 70, da primeira de 80. Parece não haver qualquer identificação clara com outros. Mas também não seria necessário que houvesse. E pode querer dizer que se está na presença dum caso de originalidade (ou de potencialidade disso), embora ocorra com mais convicção, para a situação de que se trata, uma designação como desfasamento. Ou isolamento. Compreende-se e pode-se explicar: o autor vive - sempre viveu, cremos - na vila ribatejana de Chamusca. Dir-se-á uma desvantagem. Talvez: a vida urbana - é o que pensamos - é, muito mais do que a rural, estimulante das práticas criativas, sobretudo estéticas, e uma pequena vila de província não oferece condições. As condições, porém, podem criar-se, e é o que JAE tem vindo a fazer desde que decidiu - é a palavra - pôr em prática, empenhar-se num projecto pessoal de criação literária (para não dizermos poética, que seria o seu quê pleonástico). Não cabem aqui pormenores: assinale-se apenas que, há cerca de um ano, o poeta que nos ocupa lançou, na sua vila, um jornal local e regional. Ganha assim dimensões comunitárias um projecto cultural que, restringido à escrita e à publicação de livros, não ultrapassaria muito os limites da acção individual. Há - ou houve - a ligação a Fingidor, referência de grupo, de Lisboa ou subúrbios. Mas pode não ter sido mais do que ocasional ou arbitrário. No início de carreira, um autor experimenta a necessidade de ultrapassar os limites, as limitações do meio em que vive. Procura então uma saída, por exemplo, em Lisboa. De um relance pelas datas ressaltará a regularidade com que JAE tem vindo a publicar os seus livros. Significa tal regularidade, antes de mais, o empenho de um escritor no seu trabalho de escrever, a constância de um apelo, e, principalmente, vontade de divulgar esse trabalho. Mais significativo disto - e mais significativo do que isto -, porém, será o pormenor de, a cada título, o autor anunciar sempre mais que deverão sair. Mais actualização ou menos, as promessas desses anúncios têm-se cumprido. Se fosse caso de falar dum autor em termos psicológicos, éticos, e outros (que a força institucional da literatura e o imaginário da - à volta da - criação literária consente), falaríamos das convicções de JAE como escritor em termos de projecto, talvez mesmo plano, planificação, e vontade, voluntarismo, talvez até obstinação. Estas designações poderão parecer excessivas. Mas estamos certos - nós, que o temos vindo a seguir desde pelo menos o seu primeiro livro individual, em 1983, - estamos certos de que, no futuro, JAE não irá desmentir-nos. Até porque é evidente a existência de um projecto poético (e cultural) pessoal e a realização dele exige dedicação, permanência, e um conjunto de dotações entre as quais avultarão o espírito de luta, a capacidade crítica - autocrítica, antes disso, - o rigor, o estudo, a experimentação, um aprofundamento e um alargamento de perspectivas. Nada disto é excessivo em termos de aprendizagem, evolução. Excessivas seriam ideias que apontassem para vocações imparáveis, genialidades evidentes. Se fizermos um rápido relance pelos três livros que até este o autor tinha publicado, colheremos antes, e sem surpresa maior, a impressão de uma evolução no sentido progressivo, de um crescimento e de um apuramento qualitativo - de processos de trabalho e de resultados desse trabalho, a poesia, os poemas.

Vejamos, embora muito a correr, os livros de JAE anterior a este. Os Dias Sonâmbulos parece ter passado quase despercebido. Nada de surpreendente. Passam despercebidos livros, às centenas, que entre nós se publicam, desde logo nos domínios da poesia. E no entanto essa estreia de JAE talvez justificasse logo um pouco de atenção. Relido, agora, pelo menos, deixa a impressão de ter sido uma estreia interessante. Impõe-se, porém, esta dúvida: o que o torna interessante talvez seja o que o autor vem a publicar depois. De qualquer forma, estarão nesse livro primeiro, pelo menos, algum bom gosto nas escolhas vocabulares, nas imagens (mais), nas metáforas (menos), com deslizes frequentes, é certo, e situações discursivas não resolvidas, ou resolvidas sem habilidade maior, mas dando a ideia de um mínimo de segurança no trabalho construtivo do poema, domínio técnico de recursos e meios. Não quererá dizer maturidade, e vê-se que não, logo na pouca clareza duma nota introdutória, ingénua declaração de fé verbal na poesia como exercício de humanismo assente na experiência de vida, - ideias que, só por elas, não são acertadas nem erradas, mas que costumam caracterizar aquela juvenília de que os autores, depois, vêm a recusar o trabalho de aplicação que por conta dele fizeram. De passagem se diga, porém, e desde já, que essas ideias vão manter-se na poesia de JAE até ao presente Amanhã Inesquecível - motivo pelo qual devem ser valorizadas como factor determinante dos processos temático e assumptivo. E veremos adiante não só como essas ideias se exprimem, por assim dizer, mas também que essa ideia se exprime, esperavelmente, com um pouco mais de subtileza do que acontecia no livro de estreia. E mesmo do que no livro segundo, A Contestação do Desejo: "Sonhei muito para chegar até aqui, vou muitas vezes ao chão para cair de pé quando quero, ao lado dos homens irei até onde puder. / Fazer versos foi o grande acontecimento da minha vida, continuo a escrever, a fazer versos, como se luta todos os dias por uma vida melhor"- lê-se, numa nota introdutória intitulada "A Palavra Emocional". É pelo menos interessante, e por certo também significativo, o aparecimento de uma nota do autor, a anteceder o poemário. O significado disso só pode ser uma tomada de consciência do poeta como escritor de poesia: a consciência tem em conta uma vastidão de implicações - pessoais, sociais, morais, políticas, etc. Pode, pois, falar-se de alguma evolução, do livro de 83 para o de 85. Evolução teórica, - ao nível duma autoteorização, duma autopoética. E prática? Também, esperavelmente, e por certo no sentido dum apuramento qualitativo dos resultados conseguidos no trabalho de escrever, passando por uma clarificação de temas e assuntos. Tal como no primeiro livro, os poemas do segundo variam pouco à volta de certos lugares comuns nos domínios do erótico, ou do social (neste caso relativa e aplicada ampliação das tais noções de humanismo). Pertinente referir isto, porque é aqui que o terceiro livro, A Mulher de António, se distingue dos dois primeiros, um mínimo que nos permite falar de alguma evolução e um sensível alargamento de perspectivas. Mais uma vez JAE apresenta uma nota introdutória, agora para dizer de quem se trata "a mulher de António", a indicação titular: É - talvez se possa resumir assim - uma assumpção paradigmática da mulher na sua natural condição feminina e num seu estatuto social/cultural, aquela e este indissociados. JAE faz dela sujeito da voz que aqui fala e tema do discurso que aqui se faz, a assunto preferencialmente ou quase sempre de quanto aqui se diz. O fingimento sistemático, estratégico, cobrindo a extensão do livro (42 poemas, ou fragmentos) será tudo excepto comum, e há nele mesmo alguma originalidade. Resta saber se esta originalidade é quanto baste como motivo de interesse do livro. Antes disso seria preciso ver se tal procedimento, além de pose evidente, tem um tratamento coerente, expedito e consequente em termos de construção do poema, ordenação dos poemas, estruturação deles como poemário percorrido e envolvido por uma ideia de unidade e uma exigência de coesão. Aqui parece-nos que sim, e apenas poríamos algumas reservas a certas opções vocabulares de mau gosto, ou duvidoso, prejudicando não poucas vezes o processo verbal ou tornando mais obscuros os resultados semânticos. Um maior investimento metafórico, e principalmente simbólico, produziria uma intensidade mais forte do que a resultante de certa negligência que nos parece ser, por exemplo, o resvalar, por vezes, para a crueza expressiva, ou apenas abjecção, quando a pelo menos aparente gravidade do que se trata dir-se-ia exigir outras opções. Outra questão, - nos processos, nas formalidades adoptadas pelo autor na organização e na elaboração discursiva e textual, não há, já não diremos originalidade, inovação, mas até mesmo algum esforço de renovação, alguma procura de assinalável diferença. Três poemas. O XXXII: "A minha paixão nunca/tem asas que se vejam/os homens vão com o vento/quando as asas se quebram/as asas que tenho/nos seios/e/entre as minhas pernas". O XXXIII: "Virilidade/é/uma mulher de pé/a fazer amor". O XXXIV: "Sinto que sou realmente/uma mulher para a vida/uma mulher apaixonada/quando odeia e quando ama/ah a vida esta vida/é que me parece/como os homens que só prestam na cama". Há-de ilustrar algumas afirmações que aqui ficam, embora sejam exemplos ao acaso. E outras poderiam ocorrer, mais ilustrativas ou menos, - do que aqui se diz a respeito dos motivos de interesse deste terceiro livro do autor. Motivo de interesse fundamentalmente assumptivos e temáticos - que JAE poderia ter valorizado razoavelmente se tivesse tido, com os processos escriturais, um cuidado maior. Visível que este livro terceiro representa também, em relação aos precedentes, principalmente o primeiro, um apuramento de processos construtivos do poema e uma melhoria qualitativa de resultados - formais, ou na aparência formal. Visível não muito, todavia. Mas não devemos sobrevalorizar estes aspectos, desde logo porque parece que o próprio autor não os sobrevalorizou. Não é que os desvalorize: apenas não os valoriza excessivamente, nem talvez devidamente. Parece é confiar na espontaneidade criativa, na criatividade espontânea. E não haverá nisto algum risco maior: geralmente, aquele que faz versos tem, mais ou menos apurado, o sentido de como eles se devem fazer, e os resultados não são maus. Estamos perante um caso assim e as consequências menos apuradas correm por conta dos riscos que um projecto poético sempre implica. Amanhã Inesquecível é, pois, o quarto livro de Joaquim António Emídio. E, naturalmente sem surpresas, é mais um avanço em relação aos livros anteriores. Sem ser ainda um livro de definitiva afirmação, se é que isso seria possível, ou se podemos falar nestes termos tão pouco comedidos. É, pelo menos, dos quatro que constituem a obra do autor até agora publicada, aquele onde se patenteia mais e melhores recursos expressivos, mais frutuosa e disciplinada imaginação metafórica, mais domínio e rigor nos processos técnicos construtivos do poema, mais inventiva e variedade de expedientes formais. E, o que mais deve interessar-nos, um alargamento e um aprofundamento consideráveis da visão do mundo - assumida nos temas e tematizada nos assuntos com uma eloquência notável, sinónimo, certamente, de adultez e maturidade. Um relance pelo ternário pode dar-nos, disto, uma ideia aproximada. De que temas se trata nesta poesia? São os temas comuns: a vida, a existência, o sentido da vida e da existência, o amor, o eu, o outro, a interlocução, o espaço, o tempo, etc., etc. A assumptiva prende-se sempre com a experiência vivida - do trabalho, do real, da realidade, do mundo. Há neste livro, na temática e na assumptiva deste livro, alguma coisa de novo que não encontrávamos nos livros anteriores do autor, ou encontrávamos, mas com menos frequência e menor intensidade. É a questão da poesia, de preferência: são as questões à volta da poesia, do poeta, do trabalho poético, das suas pendências, implicações e consequências. Não é por acaso que logo o primeiro poema se prende a este questionário. O modo é interrogativo, mas os termos nem tanto: "A poesia é/um/acto/adúltero/ou um nado morto?". A primeira hipótese é uma entrevisão da transgressividade. À segunda, a ideia que ocorre é talvez a de inutilidade. Da poesia. E o poema? Mais à frente estará uma resposta: "Só o poema é digno de um corpo/de nojo puro". O poema é, pois, uma realidade objectiva, um objecto construído, - enquanto a poesia será uma abstracção, um domínio abstracto. O poema é uma realidade objectiva, mas também produção, e resultado dum artifício. A realidade põe-no em questão noutro poema "os homens que eu vi" (e de que "hei-de falar com ternura") aparecem "de dedo apontado/aos poemas//matando o poeta com o brilho das unhas". A questão desvia-se, pois, do poema, dos poemas, para quem os faz, o poeta. E é com esta figura (o poeta) que o eu se identifica. Noutro poema, "é o poeta/que já enjoa". E noutro, o eu (ou o poeta) confessa "que me cega/a poesia". A cegueira é obsessiva, a cegueira é uma obsessão. Mais à frente, "o poeta/é o mais conhecido//dos homens/todos//o conhecem/das palavras ceguinhas". Isto, que interpretaríamos como autodepreciação (quase comiseração, autocomiseração) - não invalida essa outra e enérgica assumpção, noutro poema, onde "não me saem da cabeça/os cornos do poema". Estaremos no domínio da ambiguidade, mas tenderíamos para uma interpretação assente na analogia entre o poema e o touro: tal como este, aquele tem força, capacidade de investir; tal como o touro, o poema é um animal, uma animação, uma energia, uma potência, um potencial movimento. E é uma realidade apreensível, pelo menos, a nível sensorial, como se pode ler noutro poema: "Com os olhos alcanço o poema". O domínio (ou o alcance) não é apenas visual: "sinto (com os olhos?) o coração a bater nas palavras" - acrescente-se, numa indistinção de sentidos. Esta indistinção de sentidos pode dizer-se que se prende com a noção de cegueira. E à noção de cegueira liga-se a de talvez deslumbramento, curiosamente identificado com a realidade (ou a irrealidade) da poesia. O poema 27 é minimamente ilustrativo a tal respeito. E é, seguramente, um dos momentos cruciais deste livro, um dos dois ou três poemas-chave deste poemário (veremos os outros, depois). O que neste poema mais nos atrai serão outros prendimentos temáticos e assumptivos. Aqui reteríamos que "o que me cega" é "a poesia". O sujeito que diz isto, porém, começa por declarar-se falho de iluminação, de claridade: "Falta-me a intensidade da luz".

O poema remata com a poesia como agente activo (produtor) da cegueira, e a própria cegueira como situação impassível de visão. Entre uma coisa e outra, diversas notações respeitantes ao real da vida e do mundo - das quais (notações) avulta a escrita, o trabalho activo (mas insuficiente) de escrever. O interesse por estas questões não se queda por aqui. E as tópicas ou temas - ou assuntos - da escrita, do escritor, do escrever (o escritor, fazendo versos, trabalho concreto da poesia de que resultam os poemas) alargam consideravelmente o âmbito problemático desta poesia. Podemos fazer um rápido registo das principais ocorrências. É pelo menos curioso que uma das primeiras nos proponha a figura do poeta - identificando como tal aquele que escreve, o escritor, proposto este pelo próprio processo verbal da enunciação: "sentado numa cadeira". Nesta pose assumida, ele escreve, e a sua escrita produz imagens, desde logo e de imediato para consumo da personagem, na própria acção, no próprio local de acção: andar levantado, os braços no ar, os punhos cerrados. Estamos no domínio do imaginário, da imaginação, talvez do sonho, como o próprio poema admite, como hipótese equitativa da realidade. A escrita é, pois, naturalmente, um ofício, diuturno. Neste caso também, e daí o tom dum poema dando conta dessa falha temporal da escrita e duma impressão, duma sensação, talvez de alívio, que o escritor experimenta - relacionada com tal falha, mas também com uma intensificação da relação receptiva e sensorial com o mundo a que essa falha dá lugar. Desobrigado de escrever, livre do ascendente peso das palavras, digamos assim, aquele que escreve pode dizer: "agora/ando//na vida com os/ombros leves//perdi/a lupa//de ver os/homens//escolhi um lugar mais confortável//para estar à/mesa//mudei de cama/para/reconfortar os sentidos//agora ando/na vi//da com os/ouvidos". No poema seguinte faz-se uma espécie de diagnóstico da situação. Aí, a falta à escrita - o não cumprimento da obrigação de escrever - justifica-se pela falta de tensão (tesão, no texto). Há toda uma - vasta e muito forte - teorética à volta disto a noção de que a escrita é o resultado dum impulso, dum desejo - do mundo, do real, da imagem do real e do mundo, - e escrever é uma prática aplicadora e distensiva da tensão, da relação de tensão entre o sujeito (voraz) e o objecto que o suscita (lhe suscita a voracidade). Anote-se que a tensão, a falta de tensão - que justifica a falta à escrita - tem prendimentos no mundo do real - onde talvez o desejo não apenas se suscita, mas igualmente se engendra. Não vamos aqui especular sobre isto. Lembremo-nos apenas da reversibilidade da relação sujeito-objecto segundo a qual o sujeito pode tornar-se objecto da acção que o objecto como sujeito exerce sobre ele. Diz-se o objecto, diga-se o mundo, o real, a totalidade do mundo real. O sujeito pertence a esta realidade faz parte dela, ainda ou principalmente quando é a afirmação primopromominal que Ihe assume a função no domínio expressivo da linguagem. O eu, ao verbalizar-se, exprime uma relação de acção ou de sofrimento com o mundo. Mas entre o eu e o mundo pode instaurar-se - o eu pode instaurar, falando, - uma mediação, uma relação mediadora mais ou menos estável. O que geralmente identifica esta mediação é uma segunda pessoa, a mediadora Não chega a ser uma questão - é uma quase constante do lirismo. Mas, de qualquer modo, também aqui aparece enunciada e em termos de clareza inequívoca. Está noutro poema e artifício efectivo da linguagem - propõe-se em dois planos: o referencial (do real, da realidade, do vivido) e o poético (da poesia, da linguagem). No primeiro, trata-se da mulher, do amor - e da criatividade produtiva do amor, digamos assim, por conta do investimento afectivo e dos resultados (em termos de humanização das relações, de inserção destas na grande realidade humana, no grande real da humanidade). No segundo, há como que uma contracção reflexiva do vivido para o reflectido — e surge então "a tua existência/de papel/dos meus versos". O que não é a extinção da realidade vivida, mas apenas a afirmação autónoma dum domínio — o da poesia, como labor de imaginação praticado no terreno da linguagem. Mas há, entre o eu e a totalidade do real e do mundo, pode-se dizer que um sem número de mediações, de mediadores, além do outro, do tu. E haverá mesmo zonas determinadas: esperavelmente, a erótica (a vida amorosa, aqui muito velada por uma expressão algo fugidia), mas também a social, com a qual a vivência humanitária se confunde. Exemplo ilustrativo desta última é o poema titulado (ou epigrafado) Deduções de uma criança a caminho da escola. Pode acontecer ainda o erótico e o social conjugarem-se ou, pelo menos acumularem-se, como pretextos dados da experiência vivida, e imporem-se quase indistintamente à reflexão, — e ilustra-o o poema que começa por "O perigo é navegar". Disto, porém, a síntese legendária mais lapidar está noutro poema, "Na rua/no meio//de uma multidão". Por vezes, como no poema "Matou-se...", os prendimentos explícitos não vão além do social. A ausência de outros prendimentos, pelo menos explícitos, tem a ver com o carácter impessoal do discurso. No poema começando por "É preciso cantar a tristeza", esta impessoalidade tem a ver com o carácter exortativo da mensagem. Exortativo, auto-exortativo: a primeira pessoa (do plural, assinale-se) está lá, e oculta apenas até onde a marca do tempo verbal lhe denuncia a presença: "é preciso dizer quem somos". Não se entrevê identificação referencial para esta verbalização, mas ocorrências como cantar e escrever parecem apontar para a ideia de que se trata de nós, aqueles que escrevemos e cantamos. E a escrever e cantar se reduz nocionalmente o que poderíamos entender por poesia. A poesia também se pode dizer que é, como noção duma vocação laboriosa e militante, um âmbito de mediação entre o eu e o mundo, - um domínio onde o reconhecimento dos pretextos se faz e o conhecimento dos objectivos - do real, do mundo, - verbalmente se processa. Como vimos. Veríamos 'outras ocorrências mais ou menos significativas do interesse desta poesia pela vida, pela existência, pela história, pela humanidade, pelos valores mais fortes que nos iluminam e orientam, - entre eles a liberdade, obviamente, sempre presente na dialéctica interna de cada poema. Parecerão lugares comuns, e é preciso reconhecer que nem sempre nestes poemas se evitam os lugares comuns. O risco dos lugares comuns - imagens, metáforas algo saturadas, e uma sintaxe por vezes frouxa, por defeito ou erro na produção de tensões - ainda não estará muito afastada dos resultados escriturais que esta poesia patenteia. Mas, quanto a isto, - evidências que parecerão crescer como objecções a uma leitura mais exigente - não devemos ser dum rigor excessivo. Não o devemos ser, aqui, pelo menos. De resto, é preciso acrescentar que há neste poemário algumas peças de conseguimento excelente e pode-se dizer que definitivo. E uma delas é esta que, por razões de espaço, se transcreve em texto corrido: "Felizmente que deixei as mãos/a salvo//depois de tanto ter negociado/o meu ouro//sempre fui um homem/de poucas palavras// em criança era mais fácil/porque sabia rezar//já não tenho tanto tempo/para a poesia//agora compro e vendo/ouro pratas relógios etc,// o ouro sempre foi/negócio para grandes//apuros/ao fim do dia// com a poesia/ainda hoje//faço o mesmo/apuro sempre". Na posse de informações acerca da profissão do autor - ourives, antes e depois de relojoeiro, jornalista, e, obviamente, poeta, se preferirmos (a poeta), escritor de poesia, - a custo resistiremos à tentação de ler este poema como qualquer coisa de autobiográfico. Tentação mais do que legítima e sobretudo muito forte, dada a intensidade sugestiva com que ela se propõe. Cedendo-lhe, veríamos aqui, da parte daquele que escreve, uma reflexão controlada sobre duas tópicas fundamentais: o ouro e a poesia, e um tema mais do que fundamental, essencial: a vida, ou a existência, o sentido de uma e outra, noções em função do trabalho, dos trabalhos - de subsistir, de sobreviver. Em termos decerto apressados, mas sintéticos, pode-se dizer ainda que o poema encerra um instante de reflexão, uma espécie de balanço: - um relance, que a voz que aqui fala faz, do tempo passado e da experiência vivida, ao mesmo tempo que uma prospectiva, mínima que seja, do futuro e da vida a viver, em função de valores que esse balanço não põe em causa, mas em que a analogia entre o ouro e a poesia se introduz para insinuar ou mesmo produzir um sentido. Ourives, JAE lida muito, e de perto, com o ouro. Não cabe aqui lembrar pormenorizadamente o que o ouro simboliza e representa. Digamos apenas duas coisas: uma, que o ouro é, no domínio das trocas, se não um valor supremo, pelo menos um valor muito próximo da total supremacia: outra, que o ouro é um dos factores mais activos da alienação humana. Acresce que não se trata somente do ouro. Há também a prata, e os relógios. O valor simbólico da prata não rivaliza muito com o do ouro, mas haverá, pelo menos, uma relativa proximidade. O valor simbólico, neste contexto, será outro - submetido, pode-se ou podemos dizer, à cotação comercial. Os relógios terão, pois, um estimável valor comercial, prático, utilitário. Como tal, são também um factor de alienação, tal como o ouro e a prata. Insinuam-se igualmente pelo que simbolizam de contabilidade implacável do tempo, da vida, da existência, - talvez mais considerável ainda factor de alienação. O que a uma primeira leitura mais nos toca é a explícita assumptiva do poema - o assunto dos negócios tratando o tema, os temas, que são, para além da alienação e embora desta correlativos, a liberdade, o trabalho, a vida, a existência, o sentido da vida e da existência a produzir pelo trabalho, de preferência, pela criação, pela criatividade -, que, no caso, se identifica como tratando-se da poesia. Tanto pode parecer algo de estranho como relevar duma exigência de autenticidade (trate-se embora dum falso alibi), a confissão da voz, na sua fala, denunciando um sujeito que habitualmente se dedica ao negócio do ouro. O valor do ouro terá o seu quê - mas não pouco - de compensatório. E o poema nem abre com qualquer mea culpa, mas com uma afirmação peremptória e algo triunfal de resistência, de sobrevivência aos apelos da alienação: "Felizmente que deixei as mãos/a salvo". É importante que se trate das mãos, que sejam as mãos o que ficou a salvo, o que resistiu e sobreviveu aos envolvimentos do real e das realidades. À ocorrência de mãos poderão afluir noções como, por exemplo, espírito, consciência. Que se diga o que aqui se diz das mãos, pode isso significar (por omissão, porque a omissão também significa) que, com os negócios do ouro, o espírito, a consciência, ficaram alguma coisa afectados. Não é sem consequências (no foro psíquico, mental, ou tão só íntimo, interior) que alguém se dedica longamente aos negócios, ainda que (ou sobretudo se) negócios de ouro. A ocorrência de mãos pode ter outra implicação: pode querer dizer que as mãos são prioritárias, que é com as mãos que se faz tanto o negócio do ouro como o trabalho da poesia - que a poesia é um trabalho, redundante dizê-lo. Veremos adiante. Agora veríamos essa ocorrência segundo a qual "sempre fui um homem de poucas palavras". A pertinência desta inflexiva autoanotação parece estar nisto, que é a revelação duma realidade ou duas para além das aparências que as encobrem: - Tem-se a ideia de que o negócio é uma arte implicando capacidade de persuasão verbal, e pode não o ser, mas, antes, uma prática de destreza, uma técnica de manipulação (acepção etimológica) - dispensando um recurso (pelo menos excessivo) a expedientes verbais. Por um lado. Por outro, dir-se-ia que o recurso excessivo a expedientes manuais - qual prática de prestidigitação - produziria, nas mãos, algum efeito de desgaste. Vimos, porém, que não, ou não demasiado: as mãos ficariam a "salvo". Tem mais implicações: "em criança era mais fácil", - o quê? Sobreviver com poucas palavras, sendo "homem de poucas palavras". Porquê? O poema diz: "porque sabia rezar". Rezar é um acto duplo - verbal e gestual: implica a fala e as mãos, quase sempre, numa determinada pose, mais ou menos assumptiva, mais ou menos ritual. Mas, sobretudo, implica isto: uma entrega do sujeito a um domínio sobrenatural. O trabalho com o ouro, pelo menos em termos de negócios, nada ou pouco tem a ver com o sobrenatural, - por mais que o valor simbólico do ouro perdure. O que no poema se diz que mais perdura é isto, porém: "apuros". "Apuros" é, aqui, um lexema ambíguo. Significa, pelo menos, duas coisas: dificuldades e labores de aperfeiçoamento. Estes labores são difíceis, obviamente: "dificuldades" pode reduzir ou mesmo anular a distinção, e sintetizar produtivamente um significado: trabalhos, por exemplo. E a ideia de síntese reforça-se na notação de "ao fim do dia", período de balanço - do dia, - e de prospecção, - da noite, na noite. Uma interpretação não perdendo de vista o mundo referencial diria pouco mais ou menos o seguinte: - Aquele que trabalhou (em termos de negócio) com ouro, quase supremo valor material, não se esquece do que a experiência lhe ensinou (e continua a ensinar, noutros domínios), e, trabalhando com a poesia, nos domínios da linguagem, da escrita, aplica aí os ensinamentos dessa experiência. Nesta relação analógica há, certamente, uma grande reciprocidade. Este poema não é apenas a melhor peça do livro. É um poema de antologia, e, se fosse caso de sermos duma extrema severidade selectiva, diríamos, se não que ele vale toda a obra do autor, - porque a questão nunca se pode pôr nestes termos, - pelo menos que ele a poderá epigrafar convincentemente, ao mesmo tempo que redime o autor de tudo quanto de menos acertado e efectivo (produtivo de efeitos) ele fez até hoje. Ficaríamos por aqui, agora. A poesia de JAE poderia suscitar-nos mais nos seus constantes prendimentos assumptivos e temáticos. Vimos apenas algumas incidências através de determinadas ocorrências, casos, situações pontuais. Também não deveremos ser excessivos: o universo - referencial, pretextual, mas sobretudo verbal, matafórico, imaginístico, - do poeta poderá ainda não se nos apresentar exemplarmente elaborado, modelarmente organizado. E não há nisto nada de surpreendente. Passa-se outro tanto com praticamente todos os - grandes, pequenos, - escritores de poesia. Compreende-se: a poesia é uma aventura de linguagem, num tenso-distenso relacionamento com a totalidade do mundo, da realidade, do real, do pequeno e do grande real. Cada projecto poético está a questionar-se constantemente, numa incessante exigência de renovação, de inovação, de descoberta, de invenção através da pesquisa, da investigação, da experiência à volta e no centro de materiais, recursos e meios. E este caso é de lançamento ainda recente, e muito a hesitar. Ao livro quarto é já possível fazer um balanço. Precário, todavia. E uma prospectiva, esta, porém, já não propriamente duvidosa ou reservada. Vimos que ao livro terceiro, A Mulher de António, JAE se aproxima dos limiares da plena afirmação - de adultez e maturidade. Não diríamos que Amanhã Inesquecível ultrapassa muito tais limiares. Mas diríamos que este livro quarto se demarca com mais nitidez ainda dos limites, das limitações duma primeira fase, caracterizada por notórias insipiências, sobretudo no livro inaugural. Poderemos ser porventura demasiado distintivos e dizer que a visão do mundo e até mesmo o ideário poético de JAE são já processos interiores ou interiorizados amadurecidos, adultos. Não seria dizer tudo, nem sequer muito: tal maturidade e tal adultez, para se tornarem efectivos nos domínios da poesia, precisam de processar-se em termos de linguagem própria (trato pessoal da linguagem), estilo, em afirmação de clareza e nitidez. É uma conquista que JAE já começou a fazer há algum tempo. Não tarda que se torne um processo que poderá ser irreversível, um conjunto de aquisições que poderão tomar-se definitivas, - para o escritor, na cena da sua escrita, antes disso, nos seus bastidores. Para o leitor que somos é quase uma evidência.

 

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